A temporalidade e o uso de psiquedélicos: viajando no tempo

por  Fernando Beserra

Como os psiconautas sabem por experiência e os acadêmicos que estudam drogas sabem por tabela, o consumo de diversas substâncias psicoativas provoca alterações pequenas ou substanciais na temporalidade. Mas o que é temporalidade? Por que falar em temporalidade e não, simplesmente, em tempo?

Pode-se falar do tempo cronológico, medido pelo relógio, que permite que uma comunidade de humanos possa orientar-se por um mesmo registro de linguagem. Isso não significa, como foi questionada a física clássica, que o tempo seja uma grandeza absoluta, independente do observador/referencial. A discussão do tempo na física daria um tratado e não é esta a proposta deste texto. Visa-se abordar uma experiência muito menos passível de generalização: da temporalidade. Todo tempo é vivido por um sujeito particular, com sua inteireza psíquica e somática, que terá distintas experiências com o tempo e são estas que se denominam temporalidade.

A temporalidade é um dos constituintes fundamentais da psique humana. O filósofo Immanuel Kant caracterizou o tempo como uma condição formal primária da experiência, externa (do mundo físico) e interna (do mundo psicológico). De fato, a distinção entre realidade externa e interna é uma distinção formal, pois toda experiência humana é mediada pela psique e, por consequência, todo tempo é vivido não como grandeza objetiva, mas a partir de uma subjetividade, que se situa em uma cultura e sociedade, que contribuirão com a própria vivência de tempo. Além disso, o afeto, o ritmo e a organização da experiência podem interferir no fluxo desta vivência. Um provérbio inglês diz: “a watched pot never boils”, uma panela vigiada nunca ferve, isto é, quando prestamos tanta atenção a um fenômeno, parece que o tempo não passa, por outro lado, quando a atenção é pouco tenaz, o tempo parece passar de forma mais rápida que o relógio, de modo que é comum surpreender-se quando se vê a hora nestas situações.

A temporalidade, portanto, enquanto experiência do tempo pode ser alterada radicalmente por alguém que vive uma vida agitada e estressante em uma megalópole e se muda para um sítio em uma pequena província do interior, onde pode sequer estar preocupado com o relógio. Os próprios gregos distinguiam dois tipos de tempo, um derivado do deus Chronos, linear e progressivo, outro proveniente de seu filho, Kairós, um tempo qualitativo, o tempo certo ou supremo. Também se pode entender Kairós como um tempo que não é linear, seria o tempo dos deuses, onde não há o limite passado-presente-futuro de forma evidente.

Outro fator importante é que quanto mais se presta atenção ao tempo, maior o intervalo subjetivo de tempo demora uma tarefa. Quanto mais complexa e absorvente uma tarefa, por outro lado, maior a tendência de prestar-se menos atenção ao tempo e, por consequência, a tarefa parecerá ter menor duração, menos extensão no que concerne à temporalidade. A própria atenção ao tempo, portanto, ao alterar a temporalidade também pode seguir distintos ritmos, por exemplo, é diferente prestar atenção a cada minuto que se passa do que prestar atenção a mudança de tempo a partir da atenção ao clima ambiental (dia, noite, tarde…)

A temporalidade ordinária possui seis parâmetros segundo Benny Shanon:

  1. Passagem do tempo (o tempo passa);
  2. O fluxo do tempo é calibrado (passível de demarcação);
  3. O tempo exibe ordem (passado-presente-futuro);
  4. O tempo exibe direcionalidade (o futuro não caminha para o passado, p.ex);
  5. Uma métrica temporal se aplica;
  6. Todas as distinções temporais pertencem a um quadro de referências (as diferentes localizações permitem diferentes perspectivas de tempo, mas todas ligadas a um quadro maior de referências)

Dito isto, vamos a questão: Afinal, como os psiquedélicos alteram a temporalidade? Ou, de forma mais genérica, como é a vivência da temporalidade em Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC)?

Benny Shanon, autor do livro The Antipods of the Mind, fala que percebeu esta alteração logo em seu primeiro uso da Ayahuasca, quando após fechar os olhos teve uma série de mirações extremamente poderosas que pareceram durar um tempo enorme e, quando viu o relógio, viu que haviam passado apenas poucos minutos.

Um conhecido, que participa de um grupo de magistas, conta de uma experiência onde os membros do grupo comeram cogumelos com psilocibina e uma viagem (trip) que durou cronologicamente cerca de 4 horas resultou em uma vivência de aproximadamente 12 horas (temporalidade).

Outro caso particularmente interessante, com fortes articulações com afetos e inconsciente, é da experiência de outro tempo. Em uma experiência de um amigo com Salvia divinorum, que eu estava como cuidador, ele teve a visão da própria morte no futuro, em um atropelamento. A experiência foi curta, mas impactante. Nestes casos dificilmente sabe-se com clareza a distinção entre uma premonição (pré-cognição) e uma fantasia de teor psicodinâmico. Por exemplo, neste caso, a visão da própria morte pode simbolizar a necessidade de transformação do ponto de visto do Eu (ego), abrindo espaço para uma nova identidade. Tratar-se-ia, segundo uma possível interpretação via psicologia analítica, de uma maneira de compensação por algum tipo de atitude unilateral do Eu, o que fica mais claramente justificado se tomássemos a experiência como um todo. Por outro lado, será que seria um direcionamento da energia psicológica em direção a um possível atropelamento?

Quanto a velocidade do tempo, Shanon considera que no caso da Ayahuasca (que pode-se extrapolar para outros psiquedélicos) usualmente o tempo parece passar mais rápido do que o relógio indica. De forma mais radical, pode parecer que o tempo parou e que as distinções temporais não são mais relevantes. Pode-se comparar, de certo modo, com a experiência de quase morte, onde pessoas conseguem “enxergar” toda sua vida em pequenas frações de tempo cronológico.

Antes de postar esse post, pedi algumas pessoas que enviassem via email ou por mensagem, experiências que tiveram alterações radicais na temporalidade e, confirmando esta ideia, várias faziam menção a estados de quase morte ou de experiências de qualidade numinosa, isto é, onde o afeto parece remeter a divindades ou entidades sobre-humanas. O excesso de informação condensada parece ser uma constante nestas experiências de Temporalidade Não Ordinária. Há de se perguntar se o limite disto não seria a experiência do próprio vazio do nirdvandva (livre dos opostos), onde o nada e o todo estão igualmente presentes.

Outro ponto importante é a aproximação ou distanciamento dos fenômenos pensamentos, lembrados ou imaginados. Nosso eu se aproxima de forma distinta das imagens, possibilitando, p.ex, que eventos do passado (da memória ou de outros povos ou épocas da história) sejam vividos de forma vivida, como se estivessem presentes, isto é, estão presentes no aqui-agora como fantasmas, conteúdos da fantasia, no entanto, a percepção é alterada de modo que estes fenômenos podem parecer até mesmo mais reais que a realidade de vigília. Isto não é uma novidade, na medida em que várias filosofias já consideraram que há uma realidade não temporal por trás do véu de Maya, do mundo físico manifesto. A experiência de amteporalidade é uma possibilidade nos ENOC, Polari, p.ex, considera que:

O Daime, simplesmente, nos entrega a todos os Tempos. Superando as dificuldade da nossa consciência, que permanece tendo que estabelecer diferenças entre o que foi, o que é e o que será… Estas outras dimensões do tempo… passado, presente e futuro são meramente arbitrárias, representações didáticas.

Por fim, termino sem uma conclusão, mas com uma apresentação. Pergunta, finalmente, aos leitores sobre suas experiências com alteração da temporalidade. Caso alguém tenha estórias e queira vê-las discutidas aqui no Portas, pode enviar para o email: fernando.beserra@hotmail.com ou para hempadao@gmail.com.

César Ades. A experiência psicológica da duração. Cienc. Cult. vol.54 no.2 São Paulo Oct./Dec. 2002. Acesso em: 11 dez. 2013. Disponível: AQUI

SHANON, Benny. Time In: The Antipods of Mind: charting the phenomenology of the ayahuasca experience. Oxford, 2002.