A Reforma Enteogênica – Parte II

por  Fernando Beserra

Veja aqui a Parte I

Retornando ao início do texto, os termos enteógeno e psiquedélico foram propostos como formulações alternativas que substituíssem os termos alucinógeno e psicotomimético para a classificação de um conjunto de substâncias utilizadas, comumente, para práticas espirituais ou de ampliação da consciência.

Com as polaridades claramente definidas, pode-se dizer que surgiu no final do séc. XX e no início do séc. XXI um movimento crítico que valoriza a experiência direta do Si-mesmo e um contato voluntário com instâncias ditas espirituais e que chega a estes estados muitas vezes através do uso de psiquedélicos. Estes novos usos, entretanto, não tem a finalidade direta de afrontar o sistema, mas de auto-descoberta, auto-conhecimento, religiosidade, de modo a transformar a si e ao mundo por uma via distinta, que priorize uma maior consciência e um valor à imaginação.

Um exemplo foi apresentado na pesquisa de Beserra (2011) sobre o uso do enteógeno badoh negro, que foi utilizado por jovens com orientações de cuidado no uso, práticas de redução de riscos e danos. Em uma das perguntas aos usuários, orientada para saber as percepção dos usuários sobre os efeitos do badoh negro, uma parte da resposta do conjunto de entrevistas, expressa pelo DSC abaixo, demonstra esta perspectiva de transformação e auto-conhecimento:

 

“Com o enteógeno quebrei aquela minha percepção egóica de eu e encontrei outra coisa completamente diferente. Isso mudou minha vida e minha própria maneira de lidar comigo. Tive comportamentos diferentes, tive alguns insights, eu senti assim como se as duas extremidades do meu cérebro fossem vazias, sabe? Tive assim uma alteração muito grande, e eu senti muito esse efeito espiritual anterior, entendeu? Porque parecia que tava diferente, eu tava me sentindo diferente. Era como se eu não precisasse utilizar da razão, porque a razão ia limitar o que eu queria expressar e então eu tinha que falar por meio de metáforas, por meio de poemas. Creio que a expansão de consciência que temos no momento em que estamos sob o efeito do enteógeno nos permite ver muitas coisas sem bloqueios e com clareza. Também houve muitos efeitos no que concerne ao ser e “como” ser, justamente por ter uma visão de outra percepção totalmente distinta da percepção habitual, sem aquela crosta de pensamentos repetidos, comuns e obsessivos. Acho que de todos os efeitos, o que eu julguei mais benéfico foi ver que vamos e estamos muito além disso, muito além dessa rotina e desses sentimentos comuns, podemos ver que há alguém que nós somos muito diferente do que gostamos de acreditar que realmente somos. Ainda que por um momento, me encontrar comigo mesma e ver que há muito de mim que eu ainda não pude acessar, que há muito de mim que eu não conhecia, e que há muita beleza em mim mesma que eu jamais tinha notado em qualquer outro momento em minha vida.” (BESERRA, 2011, p.70-71)

Considera-se a Reforma enteogênica como experiência social simbólica. De acordo com Jones (2007), Jung trabalhou com quatro proposições centrais para trabalhar com símbolos. Na primeira, distinguiu símbolo de signo. Jung (1921/1991) atribuiu como característica dos símbolos a de sua expressão ser a melhor designação possível de um fato relativamente desconhecido, embora este fato seja postulado/expresso de alguma forma. A característica definidora de um símbolo está na relação estabelecida entre ele e seu receptor, que é marcada por uma presença repleta de significação. Quando, entretanto, é encontrada uma expressão melhor para o que era expresso pelo símbolo ele perderia seu grande potencial de afetação para a pessoa ou em uma cultura. Os símbolos não se constituem per se, mas através da relação com a consciência.

Depende da atitude da consciência que observa se alguma coisa é símbolo ou não; depende, por exemplo, da inteligência que considera o fato dado não apenas como tal, mas como expressão de algo desconhecido. É bem possível, pois, que alguém estabeleça um fato que não pareça simbólica à sua consideração, mas o é para outra consciência. Também é possível o inverso. Da mesma forma há produtos cujo caráter simbólico não depende unicamente da atitude da consciência que observa, mas que impõem ao observador seu efeito simbólico. (JUNG, 1921/1991, pár. 907)

A segunda proposição foi a dependência da atitude simbólica para classificação do símbolo sendo, portanto, um conceito baseado na interação. Como terceira proposição, Jones (2007) indicou o símbolo como função da estrutura dinâmica da psique, atribuindo à formação de símbolos o fluir da energia psíquica. Como última proposição, o símbolo serve a função transcendente por posicionar-se na complementação de elementos da psique que estão em oposição (JONES, 2007).

A função transcendente é um conceito fundamental nos escritos de Jung, particularmente em sua teoria dos opostos (MILLER, 2004). Jung trabalha com o termo em oito trabalhos escritos, quatro cartas e cinco seminários, sendo a primeira aparição do conceito em 1916 (MILLER, 2004). Tomando os opostos como lei psicológica, a função transcendente foi utilizada por Jung a maneira da síntese hegeliana, diante da tensão gerada pelos opostos, é criado um terceiro termo que fora excluído pela lógica clássica (tertium non datur – não há terceiro termo). O terceiro termo contém ambos os termos opostos e os supera, isto é, contém mais do que uma reunião ou junção dos termos anteriores. Antes dessa possibilidade da função transcendente, por aspectos culturais e psicológicos, um dos aspectos psíquicos de oposição se torna inconsciente, ligando-se à função inferior. A função transcendente, expressa via símbolo, é capaz de reunir, portanto, aspectos conscientes e inconscientes, sendo esta união ou (re)união favorável de acordo com a perspectiva da psicologia complexa de Jung.

Resumidamente, apresentam-se as polaridades dispostas no presente trabalho abaixo:

  • Ciência positivista que tratou o uso de psiquedélicos e os ENOC basicamente como psicopatológicos, sem valor, primitivos e animistas, pois não poderiam ser bem compreendidos pelo paradigma newtoniano-cartesiano. Sendo assim, toda cultura enteogênica e psiquedélica só poderia ser outrossim uma cultura adoentada.
  • Um antagonismo radical aos comportamentos e compreensões da sociedade ocidental trazido pelos hipsters. O antagonismo terminou por supervalorizar os ENOC e distintos usos de psiquedélicos: artístico, lúdico, religioso. Este movimento social hippie, no entanto, não conseguiu alcançar uma integração e terminou por chegar a sua quase extinção, o foco em muitos momentos foi na vida distante e alheia ao establishment. O próprio uso de psiquedélicos, dificilmente respeitou pressupostos básicos de atenção cuidadosa a drug-set-setting para realização de usos que levasse a redução de riscos e danos e a potencialização dos aspectos positivos dos ENOC daí provenientes.
  • Surge um novo movimento, chamado por Ott de Reforma Enteogênica, que deve englobar não apenas os movimentos sociais existentes, mas também toda nova cultura enteogênica que se ramifica. Entre estes, é característica, após diversas décadas de ausência de pesquisas no meio científico, um retorno ao estudo acadêmico dos enteógenos. Em outro espaço, surgiu também um movimento orientado por bases de uma religiosidade, como notou Ott, e que constituiu algumas formas de ritos e religiosidades amplas. A exemplo pode-se citar o movimento religioso e plural que utiliza a ayahuasca como sacramento no Brasil [e, posteriormente, no mundo] e a Igreja Nativo Americana que tem a permissão governamental de fazer uso religioso do peiote nos EUA.

O movimento da Reforma Enteogênica surge como movimento mais maduro para lidar com os ENOC, valorizando a ciência, a religiosidade, sem a necessidade de romper com todos os padrões da sociedade atual e, ao mesmo tempo, sem perder o pensamento crítico as mazelas contemporâneas. A alteração da consciência é tomada, portanto, como fator positivo para resolução de diversos conflitos e, no campo científico, retornam-se os estudos do uso de psiquedélicos para tratamento de psicopatologias como depressão [psilocibina], transtorno de estresse pós-traumático [MDMA], fobia social [cannabis sativa com alto teor de canabidiol], dor crônica [LSD e LSA], farmacodependência [ayahuasca, iboga], dentre outras. O movimento religioso é legitimado e assenta as bases em uma relação mais saudável com o Estado.

REFERÊNCIAS

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JUNG, Carl Gustav. O problema das atitudes típicas na estética. In: Tipos psicológicos. Obras Completas, v. VI. Petrópolis, RJ: Vozes, 1921/1991. p. 278-287.

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