A Reforma Enteogênica – Parte I

por Fernando Beserra

A Reforma Enteogênica é um termo proposto pelo químico Jonathan Ott. Ott (2000) utilizou o termo para se referir à busca de reconexão do ser humano atual com a herança cultural que visa resgatar o nexo com tradições espirituais da experiência direta com a denominada divindade. Ott (2000) compreende que a religião, no seu papel convencional de defensora de uma tradição, é uma defesa contra a experiência religiosa, opinião semelhante à de Jung (1999). Para Ott (2000, p.109) a religião se baseia em uma comunhão formal, não substancial, com um sacramento placebo e, como tal, é: ”uma defesa contra a experiência religiosa e divina; a religião estabelecida é uma espiritualidade materialista ou materialismo espiritual”. Jung faz uma distinção entre religião, como sentido e orientação cuidadosa e consideração de certos fatores invisíveis e incontroláveis e: “constitui um comportamento instintivo característico do homem” (JUNG, 1999, p.12).

Já o termo enteógenos foi cunhado em 1979 pelos pesquisadores Carl A. P. Ruck e Danny Staples, Robert Gordon Wasson, além dos etnobotânicos Jonathan Ott e Jeremy Bigwood, para caracterizar um grupo de substâncias psicoativas utilizadas originariamente com finalidades espirituais e significa volver-se divino interiormente (OTT, 2004). A utilização do termo ocorreu particularmente em contrariedade aos termos: alucinógeno e psicotomimético. Ott acredita que a utilização dos enteógenos, ao invés de ser um sacramento placebo, é uma ferramenta junto com outras técnicas que levam a estados alternativos de consciência à uma experiência religiosa direta.

O ressurgimento de uma espiritualidade orientada pelo consumo de enteógenos ou enteodélicos como ocorrida no ocidente pós década de 50, tomou novos rumos após um lapso de quase meia década. Este lapso se deu após uma expansão inicial no consumo de psiquedélicos pela geração hippie ou hipster nos idos da década de 60 do século passado. Segundo Goffman (2007, p.252):
A memorável leitura de “Uivo” por Ginsberg é frequentemente destacada como o momento em que a cultura de hipsters e beats já existente finalmente desabrochou. De fato, a popularização pelos meios de comunicação de massa dessa cultura de êxtase visionário e popularização apocalíptica da cultura reprimida da época ocorreu quase que instantaneamente, e os hippies – que em grande parte dominaram a imaginação política dos anos 1960 – são seus descendentes diretos.

O movimento hippie é necessário esclarecer, marcado por intenso uso de fármacos visionários, particularmente da maconha e do LSD, se caracterizou por uma aversão radical ao modo de vida e organização social estabelecida pelo homem ocidental: guerras, proibições, consumismo e a própria ciência foram colocados em questão pelos jovens ativistas. A exemplo de outras minorias significativas, foram reprimidos e sua contestação atacada pelo mainstream. Um dos principais mecanismos de enfrentamento e controle de um governo sobre sua população é a criminalização das condutas e dos atos de uma cultura ou sub-cultura, criando formas de governar e mecanismos que legitimem a repressão. Sendo assim, as convenções internacionais que, lideradas pelos EUA, visaram internacionalizar o proibicionismo de diversas substâncias psicoativas, notadamente a Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961, acabaram criando modos de incorporar estes novos fármacos em sua famosa: “Schudule I”. Nesta Schedule, que indica a ausência de usos médicos e total proscrição, foram inclusos alguns enteógenos conhecidos na época, a exemplo do LSD, dos princípios ativos mescalina, psilocibina e LSA, além do cacto peiote.

Após a proibição dos enteógenos, diversas pesquisas promissoras, como dos usos psicoterapêuticos e mobilizadores da criatividade, foram absolutamente proibidas e alguns de seus pesquisadores mesmo perseguidos politicamente.

Embora o movimento hippie seja constituído por uma grande diversidade de vertentes internas, comportamentos e posicionamentos políticos, o foco aqui se encontra na postura anti-científica e orientalista do movimento, bem como sua ênfase romântica no valor inabalável do uso ubíquo de psiquedélicos.
Do outro lado ao movimento hippie havia um movimento conservador que visava a manutenção do status quo. Neste status quo também se encontrava uma maneira de operar a ciência: o paradigma positivista.

O termo positivismo foi emprego inicialmente por Saint-Simon: “para designar o método exato das ciências e sua extensão para a filosofia (De la religion Saint-Simoniene, 1830, p.3)” (ABBAGNANO, 2007, p. 909). Foi ainda utilizado, em seus primórdios, por Augusto Comte e:
[…] graças a ele, passou a designar uma grande corrente filosófica que, na segunda metade do século XIX, teve numerosíssimas e variadas manifestações em todos os países do mundo ocidental. A característica do positivismo é a romantização da ciência, sua devoção como único guia da vida individual e social do homem, único conhecimento, única moral, única religião possível. Como romantismo em ciência, o positivismo acompanha e estimula o nascimento e a afirmação da organização técnico-industrial da sociedade moderna e expressa a exaltação otimista que acompanhou a origem do industrialismo. (ABBAGNANO, 2007, p. 909)

Ancorado nessas bases “o positivista” procurará leis “objetivas” centradas tanto na explicação lógico-matematica como na indução empírica “sintetizando” as idéias filosóficas de René Descartes [1596-1650] ao naturalismo de Francis Bacon [1561-1626]. Esta visão se dará especialmente com Isaac Newton [1643-1727] que empregou sistematicamente uma “síntese prática do empirismo indutivo de Bacon e do racionalismo matemático de Descartes, levando à plenitude o método científico iniciado por Galileu” (TARNAS, 2005, p.303).
O que se observa no paradigma positivista é um universo impessoal e a Ciência definida como único modo de acesso ao real. Por ciência, ou ciência clássica, entenda-se um:

(…) conjunto de conhecimentos sobre os fatos ou aspectos da realidade que possui: objeto específico, delimitação do campo de estudos; linguagem rigorosa (teoria estruturada), a formulação de leis, o método rigoroso: a descrição do fenômeno programada, sistemática e controlada; sua comprovação pela observação e experimentação, a predição, a formalização de esquemas teóricos compreensivos e abrangentes; técnica de processo cumulativo de conhecimentos; e objetividade, para citar as mais importantes (MELLO, 2002, p.18).

Dentro deste contexto, os estados não ordinários de consciência (ENOC) foram vistos, assim como as sub-culturas onde as pessoas realizavam uso de psiquedélicos, como doentes e foram patologizadas pelo saber científico. De acordo com Grof (1987) a ciência mecanicista, ao longo do seu desenvolvimento, adquiriu mecanismos de defesa em relação aos seus sistemas de crença, de modo que rotula como psicóticos quaisquer desvio perceptual ou conceitual do modelo newtoniano-cartesiano. Outrossim, as ciências que escapam a esta limitação no estudo de fenômenos diversos, foram rotuladas como má ciências.