Porém, a época áurea do cânhamo em Portugal decorreu entre os séculos XV a XVIII, partilhando as fortunas da expansão marítima portuguesa. De fato, para aparelhar os navios de madeira que asseguraram a Portugal o domínio das rotas oceânicas mundiais, as matérias-primas necessárias eram basicamente ferro para os canhões e ferragens e, sobretudo, cânhamo-de-cannabis para as velas e cordames.
Em Canhões e Velas na Primeira Fase da Expansão Europeia, o historiador Cario M. Cipolla considera que o sucesso dos empreendimentos marítimos europeus assenta no binómio canhões/velas, pois “[s]ubstituir remadores por velas e guerreiros por canhões significava, em resumo, trocar energia humana por forças inanimadas”; esta aplicação de concepções inovadoras no fabrico de canhões e velame permitiu “o domínio europeu do poder naval sobre as massas populacionais asiáticas e o domínio dos povos europeus sobre os mares”, um período que começou com a chegada da Vasco da Gama à Índia,em 1498 e terminou cinco séculos depois, com a retirada dos ingleses do continente indiano em 1949.
Sobre a importância crucial do cânhamo para a expansão portuguesa de Quinhentos, escrevendo no século XIX, D. Francisco S. Luiz, cardeal patriarca de Lisboa e historiador, depois de notar que “que el-Rei D, Manoel trazia comumente 300 naus suas nas conquistas de Ásia, África e América”, é bem claro: “E se alguém porventura se admirar, de que tantas e tamanhas armadas se equipassem e aprestassem tão frequentemente, e às vezes com tanta celeridade, deve atender: i° Que el-Rei D. Manoel tinha em vários lugares do reino Feitorias para a fabricação de amarras, enxárcias, cordoalhas, etc, de cânhamo, que então se cultivava em grande abundância, em Portugal”. Em Descripçam corografica do Reyno de Portugal, o erudito setecentista Oliveira Freire é igualmente peremptório, afirmando que “é esta [o cânhamo] a cultura de maior importância do reino, para o apresto das armadas, por ter o uso qualificado a sua bondade, e fortaleza”
Para se ter uma noção do gigantismo dos empreendimentos navais portugueses de antanho, e do abastecimento de cânhamo que implicavam, considere-se que em 1513 D. Manuel enviou à atual Mauritânia uma armada composta por 400 navios transportando, para além dos marinheiros, 16.000 infantes e 2.500 cavalos, a qual foi aprestada em apenas quatro meses e meio.
Atendendo à dimensão que atingiriam as aventuras navais de Portugal, constata-se que a coroa portuguesa revelou
notável discernimento ao fomentar, com início no reinado de D. João II, o estabelecimento de extensas canameiras (plantações de cânhamo) como fonte de matéria-prima para aprestar as armadas portuguesas, em regiões escolhidas pela sua excelência para a produção de cânhamo. Segundo a investigadora Maria Helena da Cruz Coelho, “A cultura do cânhamo, vital para um país que iniciava a sua expansão marítima, devia ser incentivada pelo monarca. (…) Os reis estavam, assim, sobremaneira interessados na propagação desta cultura, já com um fim industrial e que a todos os níveis lhes trazia lucro, desde o monetário e imediato das rendas e direitos, até ao melhor apetrechamento da frota nacional”.
Diz o verbete “cordoaria” do Dicionário da História de Portugal: “O aumento da nossa navegação e a consequente necessidade de matérias-primas empregadas na construção naval fizeram que, no século XVII, para diminuir a importação, se procurasse intensificar a cultura do cânhamo (…}.
A taxação vigente em Portugal na centúria de Quinhentos é reveladora do estatuto económico privilegiado que a cannabis desfrutava à época. Assim, de acordo com uma avaliação feita em 1515 para cálculo das rendas a pagar à coroa, ao cânhamo era atribuída a mais elevada cotação dos vários géneros produzidos no reino — urna pedra [oito arráteis] de linho cânhamo equivalia a 50 réis, contra 40 réis para um leitão, e 20 réis para um alqueire de trigo, um almude de vinho, ou um cordeiro ou cabrito.
Em consequência das Descobertas, no tempo de D. João III a cannabis foi introduzida no Novo Mundo, nomeadamente no Brasil e nas Antilhas, por mão dos primeiros escravos para lá levados pelos nossos antepassados. Paralelamente, os portugueses registaram o uso da cannabis em algumas das regiões que “descobriram”, sem se aperceberem de que se tratava da mesma planta que fornecia a matéria prima para aprestar os navios que os transportavam, confeccionar as roupas que usavam e fabricar o papel das Bíblias que brandíam (ver “Garcia da Orta Apresenta o Bangue ao Ocidente”).
Na crônica Etiópia Oriental e Vária História de cousas Notáveis do Oriente, publicada em 1608, o frade dominicano Frei João dos Santos escreve a propósito da alimentação dos cafres (autóctones do norte do atual Moçambique): “Em toda esta confraria se cria uma certa erva, que os cafres semeiam, a que chamam bangue, a qual é da própria feição de coentro espigado, e parece-se muito com ele na semente, semente, e na palha, mas não na folha, porque esta a tem ao modo dos goivos. Esta palha e folha a secam os cafres, e depois de bem secas as pisam, e fazem em pó, e deste comem uma mão cheia, e bebem-lhe água em cima, e assim ficam muito satisfeitos, e com o estômago confortado, e muitos cafres há que com este bangue se sustentam muitos dias, sem comer outra cousa, mas se comem muito junto, embebedam-se com ele de tal modo, como se bebessem muito vinho. Todos estes cafres são muito amigos desta erva, e ordinariamente a comem, e com ela andam meios bêbados, e os que são costumados a ela escusam o pombe [vinho indígena feito de milho], porque só com ela se satisfazem.” Na edição desta obra publicada em 1999, esclarece-se em nota de rodapé: “’Bangue’ é a deturpação da palavra ‘m–bangui’, termo pelo qual é designado em várias regiões de Moçambique a ‘suruma’ ou marijuana”.
Por outro lado, sabe-se que não passou muito tempo após o estabelecimento da carreira Portugal-India até as drogas visionárias do Oriente fazerem o percurso inverso e chegarem à Cristandade. A propósito, escreveu o investigador Manuel Braz de Magalhães: “[A] difusão da droga (opiáceos, etc.), em Portugal e na Europa não é um fenômeno das últimas décadas mas uma atração que começou há já 500 anos com o ópio e o haxixe. Já Sá de Miranda, numa carta que escreveu em 1554 diz ‘Entrou há dias peçonha clara pelos nossos portos, sem que remédio se ponha; uns dormentes, outros mortos, alguém pelas ruas sonha”.
Há até notícia de um plano de Afonso de Albuquerque para tornar Portugal um grande produtor de ópio. Assim, em carta datada de 1 de Dezembro de 1513, enviada da índia a D. Manuel, escreve o primeiro vice-rei da índia: “Se me vos alteza quyser crer, mamday semear dormydeyras das ilhas dos açores em todollos paúes de purtugall, e manday fazer afiam [ópio], que he a melhor mercadoria e cobre pêra estas partes, e em que se ganha dinheiro”; a ideia do vice-rei era vender o ópio aos indianos, pois “a jemte da Imdia perde-se sem elle, se o nam comem”.
O OnJack publica, semanalmente, trechos da tradução do livro de Jack Herer, The Emperor Wears no Clothes.
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